CRIMINOLOGIA, DIREITO PENAL E CONTROLE SOCIAL

Fernando Machado da Silva Lima

 1.983

 

    Qualquer que seja a teoria criminológica que adotemos, na perplexidade geral pertinente ao conceito, ao objeto e ao método da ciência criminológica, não podemos deixar de reconhecer que o tema que nos propusemos fere o próprio cerne da nossa disciplina, de modo que somente as considerações de cunho econômico-social e político utilizadas para a avaliação dessa ciência, como eminentemente social que é, poderão oferecer subsídios para a resposta de nossas indagações.

 

DIREITO E CONTROLE SOCIAL

 

    O Direito, em si próprio, nada mais é do que um sistema de regras engendradas pela vida em sociedade e destinadas a possibilitar a convivência humana, exatamente através do controle social, e o Direito Penal pode ser considerado o ponto nevrálgico nessa relação, posto que é através de suas normas que se realiza a parte mais substancial desse controle, pela tipificação das figuras delituosas consideradas mais nocivas à vida do agrupamento e pela segregação do criminoso do seio dessa sociedade.

 

    Assim, abandadas também todas as considerações de cunho científico pertinentes à conceituação do Direito, em especial aquelas de caracterização econômica, procuraremos ater-nos, no deslinde de nosso tema, tão-somente  à caracterização de algumas hipóteses gerais que lhe possam ser aplicadas, basicamente orientadas pelos critérios sociais propostos, do conteúdo político da norma jurídico-penal ou de sua significação econômico-social.

 

    Nosso propósito, já se observa, não é nada simples de ser alcançado, eis que deveríamos, preliminarmente, optar entre as diversas teorias criminológicas, na determinação do conteúdo ideológico ou da significação política dessas teorias, bem como na das questões de interesse material e de poder político subjacentes a essa teorização, para que de nossa própria visão do Mundo e do modo como conceituamos o Direito pudesse resultar o enfoque axiológico do assunto.

 

    Se, contudo, tomarmos como timão a idéia já aflorada em nosso conceito de Direito, pertinente ao inter-relacionamento da teoria criminológica e da teoria política, pelo reconhecimento de que aquela será direta decorrência desta e de que a própria teoria política não poderá prescindir, para seu desenvolvimento, de conceitos hauridos da criminologia, poderemos prosseguir na pesquisa a que nos propusemos, pertinente à relação entre criminologia, direito penal e controle social ou, mais diretamente, entre criminologia e poder político.

 

 

O CRIME

 

    Cada sociedade, seja por meio de processos ditos democráticos, envolvendo a representação popular para o exercício do governo e a tomada das deliberações de interesse social por intermédio de mandatários populares ou mesmo por vias autocráticas, quando todo o poder do Estado é exercido discricionariamente, existindo um grau mínimo de representatividade popular, fixa em suas leis o conceito de crime, passando a tipificar determinadas condutas como criminosas e passíveis de punição ou da aplicação de medidas de segurança.

 

    Qualquer que seja a teoria que adotemos para justificar a pena (ou mesmo a sua ausência), não podemos deixar de reconhecer a finalidade subjacente à normatividade jurídico-penal, que tipificando determinadas figuras criminosas passa a utilizar todo o aparelhamento judiciário e coercitivo do Estado a serviço do controle social.

 

    Para os adeptos do jusnaturalismo, evidentemente, esse não poderia ser o enfoque, posto que a idéia de crime e a caracterização das diversas figuras delituosas seria como que universal e imanente à própria personalidade humana.

 

    Positivamente considerada, contudo, a conduta humana ou é normal, e assim não está sujeita a qualquer sanção jurídica, ou é patológica, possibilitando a aplicação da sanção penal, mas está exatamente na conceituação do que seja a conduta normal e do que seja a patológica a chave para o controle de uma determinada sociedade.

 

    O comportamento criminoso é entendido como um sintoma patológico, isto é, como um comportamento desconforme com as expectativas morais que regem o organismo coletivo (considerando-se um regime razoavelmente representativo). Tais formas patológicas de comportamento poderão resultar quer de defeitos individuais congênitos, quer de socialização deficiente, resultante de insuficientes esforços da sociedade na transmissão das normas morais a cada geração.

 

    Pode o problema ser solucionado? Como pode a sociedade se defender, ou defender o interesse da maioria dos indivíduos que a integram?

 

    As propostas vão desde a erradicação ou a inocuização dos indivíduos defeituosos, até programas de eugenia ou aprimoramento biológico ou moral dos indivíduos patológicos ou depravados.

 

    Evidentemente, do próprio embasamento político do cientista ou dos legislador poderão resultar soluções as mais díspares, mas o que se tem observado é que, muitas vezes, os cientistas sociais se têm aliado com as classes dominantes, que lucram com a preservação do “status quo”.

 

    A pesquisa e a teoria, em Criminologia e em Sociologia do Direito, têm feito pouco mais do que prover um fundamento racional para a ordem estabelecida e justificar, por meio de rebuscados aforismos, as normas jurídico-penais implantadas, apontando normalmente nobres finalidades como determinantes dessa normatividade.

 

    Normalmente, no Direito Positivo, uma teoria social que pudesse levar à libertação humana tem sido excluída. As sociedades, na realidade, não parecem visar, com suas normas, ao aperfeiçoamento das relações gregárias, mas tão somente proteger, em geral, interesses imediatos, amiúde espúrios sob a ótica dos reais interesses sociais.

 

    O cientista social não pode deixar de ser neutro face à política, posto que todas as questões de valor ou de interesse pertinem tão somente aos políticos, e o criminólogo, no caso, deve-se colocar em uma posição de superioridade e de independência em relação a essas questões.

 

    Caso o cientista não adote essa posição de neutralidade, poderá tornar-se um humilde e voluntário servidor do “status quo”, cuja tarefa consistirá apenas em produzir teorias científicas, para tentar justificar as medidas práticas, sociais, decididas pelos políticos, tal como Hobbes justificou o Estado Autocrático, com a diferença de que, em geral, esses cientistas não conseguirão desincumbir-se de suas tarefas com a genialidade do autor do “Leviathan”.

 

    Assim, a tarefa social do cientista superior e independente aos sectarismos de valor e de interesse consiste, pelo menos sob o ponto de vista do positivismo, em determinar o chamado consenso dos sentimentos, observando as reais necessidades da sociedade e definindo os desvios do consenso como defeitos relativos à internalização das normas sociais e explicando-os ou como subsocialização, ou como patologia.

 

    Qualquer que seja a orientação do cientista positivista, neste particular, diante dos valores políticos, e qualquer que seja a orientação de seus trabalhos destinados a explicar a etiologia do crime, a ênfase do enfoque é sobre o ator desviante: a conduta será explicada por causas ou predisposições internas (explicações biológicas) ou por uma integração cultural deficiente (explicações sociológicas), mas em ambas as hipóteses, o defeito é individual e não social.

 

    O positivismo biológico e sociológico não pode, é evidente, explicar perfeitamente a realidade, pela própria unilateralidade de seus conceitos, mas devemos deixar aqui consignado, apenas aflorando o tema, face às limitações de nosso trabalho, o fato de que a esse enfoque unilateral deve suceder uma visão de conjunto do homem, com seu comportamento dito desviante examinado dentro do próprio contexto social e informada essa análise pela própria teoria social e pela teoria política, porque não se pode abstrair da realidade que se nos apresenta, consubstanciada na prática do ato delituoso, tipificado no Código Penal, toda aquela gama de condicionantes e determinantes que somente poderão ser compreendidas, em sua totalidade e em todas suas implicações mais profundas, por meio de uma percuciente análise social embasada em critérios científicos político-sociais.

 

    É claro, assim, que não existe, na realidade, uma “Criminologia” geral, mas sim uma política social geral, que envolve uma política criminal específica, a cujas orientações, propósitos e apelos está ligada a teoria e pesquisa criminológica admitida como ciência.

 

    A criminologia de que se fala torna-se, conseqüentemente, no mais das vezes, parâmetro legitimador da política social criminal, expressa no sistema punitivo legislado e nos processos de sua aplicação.

 

    No Mundo todo e mesmo no Brasil, observam-se cada vez mais claramente indícios de que é chegada a hora de distinguir com exatidão o que é científico do que é meramente ideológico, no processo de teorização do real e em que medida o prestígio da ciência é absorvido pela política, para que finalmente possamos adotar uma normatização jurídico-penal consentânea com os reais interesses da sociedade, cada vez mais contaminada pela idéia de falência das instituições jurídicas, que decorre evidente da própria cotidiana aplicação  (ou ausência de) da lei ao caso concreto.

 

    A não ser assim, deveremos em breve decretar a completa inocuidade (e até, às vezes, os efeitos contraproducentes) de todo o nosso sistema jurídico-penal repressivo, punitivo e/ou destinado a recuperar o delinqüente para o convívio social, porque de nada valerá simplesmente apenar o indivíduo que é levado a delinqüir e que, uma vez cumprida a pena, será também quase que forçado a delinqüir sempre, mais uma vez, esquecendo completamente (quer na lei, quer em sua aplicação) certos atos criminosos realmente nocivos à sociedade, quase sempre acobertados por cumplicidades, omissões e conivências de dinheiro ou de Poder.

 

 

A CRIMINOLOGIA

 

    Enrique Cury, em sua “Contribuição ao Estudo da Pena”, deixa bem claro que os estudos criminológicos, pertinentemente ao fundamento e às finalidades da sanção penal, longe de terem chegado a um denominador comum, ainda estão entregues a diversas teorias conflitantes, que tentam explicar o “por que” e o “para que” da punição (ou não é punição, mas tentativa de recuperação para o convívio social?) do indivíduo que infringe as regras de conduta de cunho penal.

 

    O autor afirma, mesmo, que nós, juristas,

 

carecemos de imaginação criadora, porque depois da fatigante luta para nos desembaraçarmos das penas corporais, nosso elenco de sanções ficou reduzido, quase que exclusivamente, às penas privativas da liberdade e – mas em menor escala – às pecuniárias”.

 

    Em nosso entender, a Criminologia não se deve apegar, tão somente, à intensidade do dano causado pelo fato delituoso; seus estudos devem ter como escopo a possibilidade da obtenção de resultados úteis para a sociedade. E resultados úteis para a sociedade somente poderão ser considerados aqueles que levem à redução da criminalidade, porque todo e qualquer incremento em seus índices nada mais poderá significar do que mais um passo em direção à completa falência da utilização do sistema repressivo como instrumento de controle social.

 

    A Criminologia dependerá portanto das contribuições das diversas ciências auxiliares, tais como a Sociologia, para a compreensão e a determinação de seus objetivos.

 

    Juarez Cirino dos Santos, em brilhante monografia intitulada “A Criminologia da Repressão” (Forense, 1979), identifica o crime como produto da desorganização social, cujos indicadores são:

 

 a) o incremento das formas de existência e de comportamento desviantes, como o crime, a doença mental, o alcoolismo, o uso de drogas, a delinqüência juvenil, etc; b) as condições de trabalho pobres, e o paradoxo da tecnologia como fator de miséria (e não de progresso) social, gerando desemprego, ligado, por sua vez, àquelas formas de comportamento desviante. Na origem dessas condições, a industrialização, a urbanização e as migrações entre os centros de produção”.

 

    Problema de crucial importância para a própria definição dos lindes da Criminologia, e que tem seduzido os estudiosos, é o do direito de resistência, em relação à própria segurança do Estado.

 

    Com efeito, se em relação ao chamado criminoso comum, a Criminologia aconselha determinadas medidas, quais as perspectivas aconselháveis em relação aos chamados “crimes políticos”, para a manutenção do controle social?

 

    A justa e equilibrada “punição” do criminoso político poderá evitar que ele se transforme em mártir, como freqüentemente acontece, em virtude da arbitrariedade ou da ignorância dos julgadores, devendo-se observar, neste ponto, que o Direito Penal, no tocante aos delitos políticos, pune tão somente a tentativa, porque as revoluções, quando vitoriosas, deixam de ser crimes para serem apenas acontecimentos históricos.

   

 

CONCLUSÕES

 

1.   Não é possível compreender o comportamento criminoso independentemente da valoração atribuída ao fato delituoso pela própria definição do crime, tornando-se necessário o prévio exame da natureza, do conteúdo e da significação ideológica dos parâmetros jurídicos e políticos de valoração do comportamento social.

 

2.   Inelutavelmente, a ciência positiva assumirá, como premissa de trabalho, a estrutura jurídica e política de um determinado Estado, tomando assim como orientação para o controle social os limites dessa ordem assumida.

 

 

3.   Em sociedades politicamente estruturadas sob o modelo de classes, ou por qualquer forma caracterizadas pela existência de privilégios, desigualdades ou dominação injusta, os estudos criminológicos, sob a influência do meio, não poderão levar a uma postura de neutralidade, e assim a pretensa “ciência criminológica” não passará de uma “teoria do controle social”, definida pelos esquemas de poder material e político vigentes.

 

 

BIBLIOGRAFIA

 

A. Machado Paupério- O Direito Político de Resistência, Forense, 1962.

Juarez Cirino dos Santos- A Criminologia da Repressão- Uma Crítica ao Positivismo em Criminologia, Forense, 1979.

Enrique Cury- Contribuição ao Estudo da Pena.

Calmon, Pedro- História das Idéias Políticas, 1952

Marinho, Josaphat- Direito de Revolução, 1953.

 

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