CRIMINOLOGIA, DIREITO PENAL E CONTROLE
SOCIAL
1.983
Qualquer que seja a teoria criminológica que adotemos, na
perplexidade geral pertinente ao conceito, ao objeto e ao método da ciência
criminológica, não podemos deixar de reconhecer que o tema que nos propusemos
fere o próprio cerne da nossa disciplina, de modo que somente as considerações
de cunho econômico-social e político utilizadas para a avaliação dessa ciência,
como eminentemente social que é, poderão oferecer subsídios para a resposta de
nossas indagações.
O Direito, em si próprio,
nada mais é do que um sistema de regras engendradas pela vida em sociedade e
destinadas a possibilitar a convivência humana, exatamente através do controle
social, e o Direito Penal pode ser considerado o ponto nevrálgico nessa
relação, posto que é através de suas normas que se realiza a parte mais
substancial desse controle, pela tipificação das figuras delituosas
consideradas mais nocivas à vida do agrupamento e pela segregação do criminoso
do seio dessa sociedade.
Assim, abandadas também
todas as considerações de cunho científico pertinentes à conceituação do
Direito, em especial aquelas de caracterização econômica, procuraremos
ater-nos, no deslinde de nosso tema, tão-somente à caracterização de algumas hipóteses gerais que lhe possam ser
aplicadas, basicamente orientadas pelos critérios sociais propostos, do
conteúdo político da norma jurídico-penal ou de sua significação
econômico-social.
Nosso propósito, já se
observa, não é nada simples de ser alcançado, eis que deveríamos,
preliminarmente, optar entre as diversas teorias criminológicas, na
determinação do conteúdo ideológico ou da significação política dessas teorias,
bem como na das questões de interesse material e de poder político subjacentes
a essa teorização, para que de nossa própria visão do Mundo e do modo como
conceituamos o Direito pudesse resultar o enfoque axiológico do assunto.
Se, contudo, tomarmos como
timão a idéia já aflorada em nosso conceito de Direito, pertinente ao
inter-relacionamento da teoria criminológica e da teoria política, pelo
reconhecimento de que aquela será direta decorrência desta e de que a própria
teoria política não poderá prescindir, para seu desenvolvimento, de conceitos
hauridos da criminologia, poderemos prosseguir na pesquisa a que nos
propusemos, pertinente à relação entre criminologia, direito penal e controle
social ou, mais diretamente, entre criminologia e poder político.
O CRIME
Cada sociedade, seja por meio de processos ditos
democráticos, envolvendo a representação popular para o exercício do governo e
a tomada das deliberações de interesse social por intermédio de mandatários
populares ou mesmo por vias autocráticas, quando todo o poder do Estado é
exercido discricionariamente, existindo um grau mínimo de representatividade
popular, fixa em suas leis o conceito de crime, passando a tipificar
determinadas condutas como criminosas e passíveis de punição ou da aplicação de
medidas de segurança.
Qualquer que seja a teoria
que adotemos para justificar a pena (ou mesmo a sua ausência), não podemos
deixar de reconhecer a finalidade subjacente à normatividade jurídico-penal,
que tipificando determinadas figuras criminosas passa a utilizar todo o aparelhamento
judiciário e coercitivo do Estado a serviço do controle social.
Para os adeptos do
jusnaturalismo, evidentemente, esse não poderia ser o enfoque, posto que a
idéia de crime e a caracterização das diversas figuras delituosas seria como
que universal e imanente à própria personalidade humana.
Positivamente considerada,
contudo, a conduta humana ou é normal, e
assim não está sujeita a qualquer
sanção jurídica, ou é patológica,
possibilitando a aplicação da sanção penal, mas está exatamente na conceituação
do que seja a conduta normal e do que seja a patológica a chave para o controle
de uma determinada sociedade.
O comportamento criminoso é
entendido como um sintoma patológico, isto é, como um comportamento desconforme
com as expectativas morais que regem o organismo coletivo (considerando-se um
regime razoavelmente representativo). Tais formas patológicas de comportamento
poderão resultar quer de defeitos individuais congênitos, quer de socialização
deficiente, resultante de insuficientes esforços da sociedade na transmissão
das normas morais a cada geração.
Pode o problema ser
solucionado? Como pode a sociedade se defender, ou defender o interesse da
maioria dos indivíduos que a integram?
As propostas vão desde a
erradicação ou a inocuização dos indivíduos defeituosos, até programas de
eugenia ou aprimoramento biológico ou moral dos indivíduos patológicos ou
depravados.
Evidentemente, do próprio
embasamento político do cientista ou dos legislador poderão resultar soluções
as mais díspares, mas o que se tem observado é que, muitas vezes, os cientistas
sociais se têm aliado com as classes dominantes, que lucram com a preservação
do “status quo”.
A pesquisa e a teoria, em
Criminologia e em Sociologia do Direito, têm feito pouco mais do que prover um
fundamento racional para a ordem estabelecida e justificar, por meio de
rebuscados aforismos, as normas jurídico-penais implantadas, apontando
normalmente nobres finalidades como determinantes dessa normatividade.
Normalmente, no Direito
Positivo, uma teoria social que pudesse levar à libertação humana tem sido
excluída. As sociedades, na realidade, não parecem visar, com suas normas, ao
aperfeiçoamento das relações gregárias, mas tão somente proteger, em geral,
interesses imediatos, amiúde espúrios sob a ótica dos reais interesses sociais.
O cientista social não pode
deixar de ser neutro face à política, posto que todas as questões de valor ou
de interesse pertinem tão somente aos políticos, e o criminólogo, no caso,
deve-se colocar em uma posição de superioridade e de independência em relação a
essas questões.
Caso o cientista não adote
essa posição de neutralidade, poderá tornar-se um humilde e voluntário servidor
do “status quo”, cuja tarefa
consistirá apenas em produzir teorias científicas, para tentar justificar as
medidas práticas, sociais, decididas pelos políticos, tal como Hobbes
justificou o Estado Autocrático, com a diferença de que, em geral, esses
cientistas não conseguirão desincumbir-se de suas tarefas com a genialidade do
autor do “Leviathan”.
Assim, a tarefa social do
cientista superior e independente aos sectarismos de valor e de interesse
consiste, pelo menos sob o ponto de vista do positivismo, em determinar o
chamado consenso dos sentimentos, observando as reais necessidades da sociedade
e definindo os desvios do consenso como defeitos relativos à internalização das
normas sociais e explicando-os ou como subsocialização, ou como patologia.
Qualquer que seja a
orientação do cientista positivista, neste particular, diante dos valores
políticos, e qualquer que seja a orientação de seus trabalhos destinados a
explicar a etiologia do crime, a ênfase do enfoque é sobre o ator desviante: a
conduta será explicada por causas ou predisposições internas (explicações
biológicas) ou por uma integração cultural deficiente (explicações
sociológicas), mas em ambas as hipóteses, o defeito é individual e não social.
O positivismo biológico e
sociológico não pode, é evidente, explicar perfeitamente a realidade, pela
própria unilateralidade de seus conceitos, mas devemos deixar aqui consignado,
apenas aflorando o tema, face às limitações de nosso trabalho, o fato de que a
esse enfoque unilateral deve suceder uma visão de conjunto do homem, com seu
comportamento dito desviante examinado dentro do próprio contexto social e
informada essa análise pela própria teoria social e pela teoria política,
porque não se pode abstrair da realidade que se nos apresenta, consubstanciada
na prática do ato delituoso, tipificado no Código Penal, toda aquela gama de condicionantes
e determinantes que somente poderão ser compreendidas, em sua totalidade e em
todas suas implicações mais profundas, por meio de uma percuciente análise
social embasada em critérios científicos político-sociais.
É claro, assim, que não
existe, na realidade, uma “Criminologia” geral, mas sim uma política social
geral, que envolve uma política criminal específica, a cujas orientações,
propósitos e apelos está ligada a teoria e pesquisa criminológica admitida como
ciência.
A criminologia de que se
fala torna-se, conseqüentemente, no mais das vezes, parâmetro legitimador da
política social criminal, expressa no sistema punitivo legislado e nos
processos de sua aplicação.
No Mundo todo e mesmo no
Brasil, observam-se cada vez mais claramente indícios de que é chegada a hora
de distinguir com exatidão o que é científico do que é meramente ideológico, no
processo de teorização do real e em que medida o prestígio da ciência é
absorvido pela política, para que finalmente possamos adotar uma normatização
jurídico-penal consentânea com os reais interesses da sociedade, cada vez mais
contaminada pela idéia de falência das instituições jurídicas, que decorre
evidente da própria cotidiana aplicação
(ou ausência de) da lei ao caso concreto.
A não ser assim, deveremos
em breve decretar a completa inocuidade (e até, às vezes, os efeitos
contraproducentes) de todo o nosso sistema jurídico-penal repressivo, punitivo
e/ou destinado a recuperar o delinqüente para o convívio social, porque de nada
valerá simplesmente apenar o indivíduo que é levado a delinqüir e que, uma vez
cumprida a pena, será também quase que forçado a delinqüir sempre, mais uma
vez, esquecendo completamente (quer na lei, quer em sua aplicação) certos atos
criminosos realmente nocivos à sociedade, quase sempre acobertados por
cumplicidades, omissões e conivências de dinheiro ou de Poder.
A CRIMINOLOGIA
Enrique Cury, em sua “Contribuição ao Estudo da Pena”,
deixa bem claro que os estudos criminológicos, pertinentemente ao
fundamento e às finalidades da sanção penal, longe de terem chegado a um
denominador comum, ainda estão entregues a diversas teorias conflitantes, que
tentam explicar o “por que” e o “para que” da punição (ou não é punição, mas
tentativa de recuperação para o convívio social?) do indivíduo que infringe as
regras de conduta de cunho penal.
O autor afirma, mesmo, que
nós, juristas,
“carecemos de imaginação criadora, porque depois da
fatigante luta para nos desembaraçarmos das penas corporais, nosso elenco de
sanções ficou reduzido, quase que exclusivamente, às penas privativas da
liberdade e – mas em menor escala – às pecuniárias”.
Em nosso entender, a
Criminologia não se deve apegar, tão somente, à intensidade do dano causado
pelo fato delituoso; seus estudos devem ter como escopo a possibilidade da
obtenção de resultados úteis para a sociedade. E resultados úteis para a
sociedade somente poderão ser considerados aqueles que levem à redução da
criminalidade, porque todo e qualquer incremento em seus índices nada mais poderá
significar do que mais um passo em direção à completa falência da utilização do
sistema repressivo como instrumento de controle social.
A Criminologia dependerá
portanto das contribuições das diversas ciências auxiliares, tais como a
Sociologia, para a compreensão e a determinação de seus objetivos.
Juarez Cirino dos Santos, em
brilhante monografia intitulada “A
Criminologia da Repressão” (Forense, 1979), identifica o crime como produto
da desorganização social, cujos indicadores são:
“a) o incremento das formas de existência
e de comportamento desviantes, como o crime, a doença mental, o alcoolismo, o
uso de drogas, a delinqüência juvenil, etc; b) as condições de trabalho pobres,
e o paradoxo da tecnologia como fator de miséria (e não de progresso) social,
gerando desemprego, ligado, por sua vez, àquelas formas de comportamento
desviante. Na origem dessas condições, a industrialização, a urbanização e as
migrações entre os centros de produção”.
Problema de crucial
importância para a própria definição dos lindes da Criminologia, e que tem
seduzido os estudiosos, é o do direito de resistência, em relação à própria
segurança do Estado.
Com efeito, se em relação ao
chamado criminoso comum, a Criminologia aconselha determinadas medidas, quais
as perspectivas aconselháveis em relação aos chamados “crimes políticos”, para
a manutenção do controle social?
A justa e equilibrada
“punição” do criminoso político poderá evitar que ele se transforme em mártir,
como freqüentemente acontece, em virtude da arbitrariedade ou da ignorância dos
julgadores, devendo-se observar, neste ponto, que o Direito Penal, no tocante
aos delitos políticos, pune tão somente a tentativa, porque as revoluções,
quando vitoriosas, deixam de ser crimes para serem apenas acontecimentos
históricos.
CONCLUSÕES
1. Não é
possível compreender o comportamento criminoso independentemente da valoração
atribuída ao fato delituoso pela própria definição do crime, tornando-se
necessário o prévio exame da natureza, do conteúdo e da significação ideológica
dos parâmetros jurídicos e políticos de valoração do comportamento social.
2. Inelutavelmente,
a ciência positiva assumirá, como premissa de trabalho, a estrutura jurídica e
política de um determinado Estado, tomando assim como orientação para o controle
social os limites dessa ordem assumida.
3. Em
sociedades politicamente estruturadas sob o modelo de classes, ou por qualquer
forma caracterizadas pela existência de privilégios, desigualdades ou dominação
injusta, os estudos criminológicos, sob a influência do meio, não poderão levar
a uma postura de neutralidade, e assim a pretensa “ciência criminológica” não
passará de uma “teoria do controle social”, definida pelos esquemas de poder
material e político vigentes.
BIBLIOGRAFIA
A. Machado
Paupério- O Direito Político de Resistência, Forense, 1962.
Juarez Cirino dos Santos- A
Criminologia da Repressão- Uma
Crítica ao Positivismo em Criminologia,
Forense, 1979.
Enrique Cury- Contribuição ao
Estudo da Pena.
Calmon, Pedro- História das
Idéias Políticas, 1952
Marinho, Josaphat- Direito de
Revolução, 1953.
e.mail: profpito@yahoo.com